quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Resposta de um servidor da Justiça Estadual à pergunta: Justiça Célere ou Decisões de Qualidade? É possível aliar estes dois conceitos?

Por Fabio Shibuya Watanabe Chiappim

Trabalho no Poder Judiciário, e sou bacharel em Direito, podendo falar sobre o assunto com conhecimento de causa.

Respondendo à sua pergunta, a resposta é sim. O que falta para isso acontecer então?

Antes, porém, devemos esclarecer um fato: O Poder Judiciário do Estado de São Paulo é o maior do mundo em número de processos em andamento, aproximadamente 10 milhões de ações, ou seja, existe um processo judicial para cada 4 paulistas.

E qual o primeiro empecilho? Financeiro. O dinheiro arrecadado pelo Poder Judiciário é automaticamente repassado ao Poder Executivo, que contrariando a própria legislação, não repassa sequer o valor mínimo estipulado. Se aqui fosse como no Rio de Janeiro, onde o valor arrecadado fica inteiramente com o Tribunal de Justiça daquele Estado, não teríamos uma situação tão caótica como a atual.

Isto porque sem verba não há como contratar mais juízes e funcionários (que temos uma carência na casa dos milhares), não há sequer como reajustar os salários (ocasionando greves), a informatização do Tribunal, tão necessária para acelerar os julgamentos, fica emperrada, entre outros.

Claro que este não é o único problema. Existem inúmeros outros fatores, mas cito apenas um deles: o próprio sistema do funcionalismo público. Não há plano de carreira, e o funcionário não é incentivado a produzir mais. Em português claro, quanto mais competência você demonstra, a única coisa que você ganha é mais serviço. Ao contrário, se você mostra incapacidade, sua recompensa será menos serviço, já que entre passar para outra pessoa, ou refazer o que este infeliz fez, opta-se pela primeira hipótese.

Demissão por incapacidade técnica? No papel existe. Na prática, nunca tive notícia disso.

E mesmo assim, é possível julgar rapidamente e com qualidade? Sim. Basta o quê? Empenho de todos.

Trabalho na 2ª Vara do JEC de Santos, que logo que foi inaugurada, recebeu 14 mil processos já em andamento. Uma audiência era marcada para 22 meses depois. Os funcionários eram poucos. Então como resolver este problema? A resposta veio do juiz que assumiu a Vara: ele conseguiu formar um time de funcionários, onde TODOS se empenharam ao máximo para colocar ordem na bagunça. Foram 3 anos de trabalho duro para todos nós, mas os resultados estão aí: hoje temos aproximadamente 4 mil processos em andamento, as audiências são marcadas para, no máximo, 2 meses. Um processo tem levado, em média, 6 meses para ter uma sentença.

Tem solução, mas pra isso, é preciso primeiro vontade política lá em cima, e vontade de resolver os problemas aqui embaixo.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Justiça Célere ou Decisões de Qualidade? É possível aliar estes dois conceitos?

Curiosa - ou patética - a forma como a justiça brasileira funciona em alguns casos. 

A nossa Constituição, ao determinar como garantia a todo cidadão o devido processo legal estabelece que todo e qualquer assunto a ser decidido pela via judicial deve se submeter a um procedimento específico, pré-existente, padronizado e cercado de formalidade para a proteção dos direitos ali envolvidos e como meio de garantir um decisão imparcial e isenta de vícios, portanto "justa" - de acordo com os padrões de justiça que adotamos.

O devido processo legal, por sua vez, ganha cor por meio dos códigos de processo civil e penal, por partes da Consolidação das Leis do Trabalho e por algumas leis que regulam procedimentos específicos, como as causas de pequeno valos nos juizados especiais, aplicando-se uma ou outra de acordo com o tipo de ação a ser julgada, da esfera da justiça e outras circunstâncias que atraem determinado procedimento.

Nosso sistema legal pervê o amplo acesso ao Poder Judiciário, ou seja, em tese, não há impeditivos para que qualquer pessoa se socorra do Poder Judiciário para buscar solução para algum problema. Em tese...

O fato é que com uma remuneração média de pouco mais de R$1300,00, segundo o DIEESE, em 2011, a maior parte da população brasileira não tem real acesso ao Poder Judiciário, seja pela impossibilidade de se contratar um advogado e arcar com as custas de uma ação, seja pela dificuldade em se conseguir o auxílio das Defensorias Públicas ou pelo simples fato de que, em alguns casos, presta-se um verdadeiro desserviço ao cidadão quando este se socorre do Poder Judiciário.

Os casos de prisões irregulares onde a pessoa fica presa até por meses sem qualquer justificativa plausível - leia-se casos em que a lei autoriza a prisão antes do julgamento - flagrantes inexistentes, adolescentes presos em carceragens superlotadas de adultos e que acabam sendo violentadas, dentre outras situações escabrosas são as que mais chama à atenção por terem larga divulgação na mídia, e com razão, pois muitas vezes alguma solução só ocorre depois da superexposição do tema pela mídia sensacionalista que, apesar de o fazer a fim de explorar o sofrimento alheio, mesmo sem querer, acaba auxiliando.

Mas, o que poucos sabem, é que muitas vezes nas ações mais simples, mais banais, ocorrem as maiores injustiças, ou melhor, os erros judiciários mais grotescos e primários, fazendo com que nós que lidamos com estas questões no dia a dia fiquemos absolutamente prostrados diante do teor de certas decisões.

E neste ponto surgem obstáculos que beiram o ridículo - situações impossíveis de se explicar a um cliente - onde ele "perde" a sua ação não para os argumentos trazidos pela outra parte ou pelo brilhantismo do advogado "ex adverso"¹ que conseguiu provar que o cliente dele - e não o seu - estava certo na questão. Não. Seu cliente "perdeu" o processo para o juiz, pois este, por falta de atenção, por não entender corretamente a questão central do processo ou por qualquer outra questão, acaba negando pedidos importantes no decurso do processo ou até mesmo extinguindo a ação e condenando seu cliente em custas e honorários de sucumbência² sem sequer julgar o mérito do pedido, ou seja, a ação que tanto trabalho lhe deu para propor, que tanto seu cliente aguarda por uma decisão, sem qualquer explicação razoável, é extinta, arquivada, seu cliente sai no prejuízo e você, nobre advogado, acaba com sua reputação na lama.

Cabe ressaltar que são irrelevantes as razões pelas quais estes erros ocorrem, pois o fato de ocorrerem denota o flagrante despreparo do atual modelo judiciário brasileiro para lidar com a garantia de amplo acesso ao poder judiciário. Se hoje, com o pouco acesso que se tem vivemos à beira do colapso do sistema, quiçá o momento em que os menos favorecidos possam realmente acessar a justiça.

Veja-se que até mesmo o melhor dos juízes, trabalhando em excesso, sem estrutura e sem servidores em quantidade e qualidade suficiente para administrar seu cartório cometerá erros grosseiros em seu trabalho ou precisará de anos para concluir o trabalho que faria normalmente em um mês. Este problema fica ainda mais evidente quando nos deparamos com juízes mal-preparados.

Há, no entanto, uma pressão constante sobre os magistrados brasileiros, seja por parte da presidência de seus respectivos tribunais, seja por parte da sociedade e toda a comunidade jurídica, para que estes façam seu trabalho com o máximo de celeridade. Por outro lado, realizam-se mutirões de legalidade discutível para julgar processos "parados", esvaziar cartórios abarrotados de processos na fila para julgamento, concessão de liberdades condicionais,etc, dentre outras medidas a fim de fazer os processos "andarem mais rápido" e, supostamente, entregar ao cidadão uma prestação jurisdicional mais adequada.

O fato, entretanto, é que uma decisão rápida corre o grande risco de se tornar uma decisão tão inútil quanto uma decisão que leva dez anos para ser proferida. O resultado prático de uma decisão rápida, porém incorreta, ilegal, viciada, é, na melhor das hipóteses, nulo, quando não traz prejuízo para quem dela precisava.

Infelizmente, na prática, o resultado destas medidas de celeridade, têm sido o crescimento no número de decisões absolutamente inúteis que são dilaceradas pelos recursos manejados pelas partes do processo -  com razão - e que só servem para aumentar o custo do manejo do processo, tanto para o autor quanto para o próprio Poder Judiciário, prolongar desnecessariamente um processo além do que ele deveria durar, aumentar ainda mais a sensação de injustiça geral no povo brasileiro e piorar a imagem de todos os profissionais do Direito.

Celeridade sim, pois a sociedade clama por uma solução razoável e útil para o seu problema, mas é urgente a rediscussão do sistema judiciário brasileiro, pois a sociedade pouco tem retirado de resultados úteis das decisões judiciais no Brasil.

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¹ ex adverso: Adversário
²honorários de sucumbência: Quantia que deve ser paga ao advogado da parte contrária em um processo pelo perdedor. 

CNJ - Função x Competência: O dilema que põe o sistema de justiça brasileiro em xeque

A discussão já é antiga - com efeito, remonta aos idos do ano de 2004 com a Emenda Constitucional n.º 45 e chamada "Reforma do Judiciário", que alterou competências e criou, dentre outros, o Conselho Nacional de Justiça - mas recentemente, em função dos últimos acontecimentos, reacendeu-se a polêmica sobre as competências do CNJ para apurar eventuais desvios de conduta dos juízes brasileiros.

A fim de inaugurar os trabalhos deste que pretende ser um canal de discussão e, principalmente, de desmistificação do Poder Judiciário, do Direito como um todo e da Justiça brasileira, escolhi este tema pela sua relevância jurídica e social e, acima de tudo, pelo impacto direto que esta questão traz sobre a sensação de justiça que se tem neste país.

Antes de mais nada, é importante destacar que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão administrativo, criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004 como órgão de controle externo do Poder Judiciário, com a finalidade de padronizar, organizar, esclarecer e apurar desvios de conduta.

Ocorre que o CNJ não faz parte do Poder Judiciário, sendo um órgão externo, independente da estrutura organizacional e hierárquica do Judiciário, mas que possui atribuições que influenciam diretamente a atuação deste.

O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, dentre suas demais competências, tem como atuação principal a decisão sobre temas constitucionais, como no caso, pois as competências dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), as garantias e atribuições dos juízes, todas as questões que envolvam garantias pessoais em qualquer tipo de processo judicial ou administrativo (como sigilo, devido processo legal, juiz ou órgão competente para aquele julgamento, etc), a autonomia das diferentes esferas do Poder Judiciário e toda e qualquer alteração nesta mecânica são, por excelência, questões constitucionalmente relevantes e, portanto, de plena competência do Supremo.

A discussão, em si, versa sobre a possibilidade de o CNJ investigar e punir juízes por sua má-atuação e desvios de conduta e se suas determinações sobre padronizações, procedimentos e celeridade no julgamento dos processos tem ou não validade.

Para a Associação dos Magistrados do Brasil, o CNJ não tem esta competência e, afim de interromper a sua atuação, a AMB recorreu ao Supremo Tribunal Federal, por meio de uma ação, para que seja declarada a inconstitucionalidade dos atos praticados pela CNJ em sua atuação.

E neste ponto reside a primeira questão que assola o povo brasileiro: Como um órgão (STF) que é fiscalizado por outro (CNJ) pode decidir sobre o funcionamento deste?

O fato é que para nós juristas isto é um questão elementar que se resolve pela simples leitura do texto constitucional. Nós, pela nossa formação acadêmica jurídica, estamos condicionados a este sistema e esses aparentes conflitos não nos causam estranheza. No entanto, para o brasileiro médio - e não falo da classe média, mas sim da média dos brasileiros, constituída por pessoas simples, com baixo poder aquisitivo e parco acesso à formação e à informação - esta discussão beira à imoralidade.

Veja-se que a questão da constitucionalidade da atuação do CNJ é relevante por si só e a opinião pública - especialmente a dos mais simples - não vai afetar, diretamente, a solução do problema mas, não se pode esquecer que toda esta discussão afeta a totalidade do povo brasileiro e que esta questão ganha ainda mais peso quando analisamos a situação geral da justiça brasileira, onde uma revisão de benefício previdenciário só tem um decisão final após o passamento do titular do benefício, onde uma ação em trâmite no juizado especial leva quase um ano para a realização de sua audiência, dentre outros problemas.

Não estamos, com isto, propondo o afastamento da ordem constitucional e uma caça às bruxas com os juízes brasileiros, mas devemos atentar para o impacto social dos recentes acontecimentos. Uma decisão de um juiz afastando os poderes do órgão que o fiscaliza é flagrantemente imoral, por mais jurídica que seja. O povo brasileiro recebe esta informação como sinal de corporativismo puro e "safadeza" por parte dos magistrados brasileiros que "ganham bem e não querem trabalhar direito".

Por outro lado, a postura de muitos magistrados que vão a público declarar-se contrários à fiscalização externa de suas atividades, esfregando nos rostos de qualquer um que se atreva a discutir o tema o fato de ser um funcionário público concursado, investido no cargo e vitalício, não contribui em nada para dissipação deste asco que a sociedade brasileira adquiriu de sua justiça e, ainda por cima, só serve para manchar a atuação correta dos bons magistrados, que são a maioria, sim, pois com a importância que as decisões judicias têm em nosso dia a dia, se vivêssemos dentre uma maioria de juízes ruins, já teríamos voltado à idade da pedra.

Um poder judiciário forte e funcional é uma poderosa ferramenta da democracia e é indispensável à distribuição de justiça e aplicação dos princípios constitucionais aos casos concretos. Todo desvio de conduta, por mínimo que seja, deve ser extirpado deste sistema, pois a sociedade tem - ainda - o judiciário em alta conta e os membros deste poder dentre os representantes das mais importantes classes de cidadãos. É fato que quando se enfraquece um dos sustentáculos de uma sociedade, toda ela se desequilibra.

Em um país com tamanhas desigualdades, as vantagens e atribuições das funções públicas mais complexas, como a de juiz, ganham vestes de vantagens indevidas e não-merecidas quando comparadas com a situação geral do brasileiro, fato que se acentua quando questões como esta ganham as páginas dos jornais, transmitindo a mensagem de que os membros do judiciário compõe uma casta fechada e especial e que se destacam dos demais brasileiros, não se aplicando a eles as mesmas regras que aos demais.

A solução jurídica para o tema ainda demandará grandes discussões e não se vislumbra, tão cedo, o fim desta disputa que ganha cada vez mais participantes e contornos cada vez mais obscuros mas, socialmente, temos a consciência de que é chegado o tempo em que não se admitirá mais que as trevas da mistificação e dos corporativismos afastem a sociedade de seu verdadeiro papel nos rumos do país e que a transparência da atuação dos agentes públicos é o único caminho.