A discussão já é antiga - com efeito, remonta aos idos do ano de 2004 com a Emenda Constitucional n.º 45 e chamada "Reforma do Judiciário", que alterou competências e criou, dentre outros, o Conselho Nacional de Justiça - mas recentemente, em função dos últimos acontecimentos, reacendeu-se a polêmica sobre as competências do CNJ para apurar eventuais desvios de conduta dos juízes brasileiros.
A fim de inaugurar os trabalhos deste que pretende ser um canal de discussão e, principalmente, de desmistificação do Poder Judiciário, do Direito como um todo e da Justiça brasileira, escolhi este tema pela sua relevância jurídica e social e, acima de tudo, pelo impacto direto que esta questão traz sobre a sensação de justiça que se tem neste país.
Antes de mais nada, é importante destacar que o Conselho Nacional de Justiça é um órgão administrativo, criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004 como órgão de controle externo do Poder Judiciário, com a finalidade de padronizar, organizar, esclarecer e apurar desvios de conduta.
Ocorre que o CNJ não faz parte do Poder Judiciário, sendo um órgão externo, independente da estrutura organizacional e hierárquica do Judiciário, mas que possui atribuições que influenciam diretamente a atuação deste.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, dentre suas demais competências, tem como atuação principal a decisão sobre temas constitucionais, como no caso, pois as competências dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), as garantias e atribuições dos juízes, todas as questões que envolvam garantias pessoais em qualquer tipo de processo judicial ou administrativo (como sigilo, devido processo legal, juiz ou órgão competente para aquele julgamento, etc), a autonomia das diferentes esferas do Poder Judiciário e toda e qualquer alteração nesta mecânica são, por excelência, questões constitucionalmente relevantes e, portanto, de plena competência do Supremo.
A discussão, em si, versa sobre a possibilidade de o CNJ investigar e punir juízes por sua má-atuação e desvios de conduta e se suas determinações sobre padronizações, procedimentos e celeridade no julgamento dos processos tem ou não validade.
Para a Associação dos Magistrados do Brasil, o CNJ não tem esta competência e, afim de interromper a sua atuação, a AMB recorreu ao Supremo Tribunal Federal, por meio de uma ação, para que seja declarada a inconstitucionalidade dos atos praticados pela CNJ em sua atuação.
E neste ponto reside a primeira questão que assola o povo brasileiro: Como um órgão (STF) que é fiscalizado por outro (CNJ) pode decidir sobre o funcionamento deste?
O fato é que para nós juristas isto é um questão elementar que se resolve pela simples leitura do texto constitucional. Nós, pela nossa formação acadêmica jurídica, estamos condicionados a este sistema e esses aparentes conflitos não nos causam estranheza. No entanto, para o brasileiro médio - e não falo da classe média, mas sim da média dos brasileiros, constituída por pessoas simples, com baixo poder aquisitivo e parco acesso à formação e à informação - esta discussão beira à imoralidade.
Veja-se que a questão da constitucionalidade da atuação do CNJ é relevante por si só e a opinião pública - especialmente a dos mais simples - não vai afetar, diretamente, a solução do problema mas, não se pode esquecer que toda esta discussão afeta a totalidade do povo brasileiro e que esta questão ganha ainda mais peso quando analisamos a situação geral da justiça brasileira, onde uma revisão de benefício previdenciário só tem um decisão final após o passamento do titular do benefício, onde uma ação em trâmite no juizado especial leva quase um ano para a realização de sua audiência, dentre outros problemas.
Não estamos, com isto, propondo o afastamento da ordem constitucional e uma caça às bruxas com os juízes brasileiros, mas devemos atentar para o impacto social dos recentes acontecimentos. Uma decisão de um juiz afastando os poderes do órgão que o fiscaliza é flagrantemente imoral, por mais jurídica que seja. O povo brasileiro recebe esta informação como sinal de corporativismo puro e "safadeza" por parte dos magistrados brasileiros que "ganham bem e não querem trabalhar direito".
Por outro lado, a postura de muitos magistrados que vão a público declarar-se contrários à fiscalização externa de suas atividades, esfregando nos rostos de qualquer um que se atreva a discutir o tema o fato de ser um funcionário público concursado, investido no cargo e vitalício, não contribui em nada para dissipação deste asco que a sociedade brasileira adquiriu de sua justiça e, ainda por cima, só serve para manchar a atuação correta dos bons magistrados, que são a maioria, sim, pois com a importância que as decisões judicias têm em nosso dia a dia, se vivêssemos dentre uma maioria de juízes ruins, já teríamos voltado à idade da pedra.
Um poder judiciário forte e funcional é uma poderosa ferramenta da democracia e é indispensável à distribuição de justiça e aplicação dos princípios constitucionais aos casos concretos. Todo desvio de conduta, por mínimo que seja, deve ser extirpado deste sistema, pois a sociedade tem - ainda - o judiciário em alta conta e os membros deste poder dentre os representantes das mais importantes classes de cidadãos. É fato que quando se enfraquece um dos sustentáculos de uma sociedade, toda ela se desequilibra.
Em um país com tamanhas desigualdades, as vantagens e atribuições das funções públicas mais complexas, como a de juiz, ganham vestes de vantagens indevidas e não-merecidas quando comparadas com a situação geral do brasileiro, fato que se acentua quando questões como esta ganham as páginas dos jornais, transmitindo a mensagem de que os membros do judiciário compõe uma casta fechada e especial e que se destacam dos demais brasileiros, não se aplicando a eles as mesmas regras que aos demais.
A solução jurídica para o tema ainda demandará grandes discussões e não se vislumbra, tão cedo, o fim desta disputa que ganha cada vez mais participantes e contornos cada vez mais obscuros mas, socialmente, temos a consciência de que é chegado o tempo em que não se admitirá mais que as trevas da mistificação e dos corporativismos afastem a sociedade de seu verdadeiro papel nos rumos do país e que a transparência da atuação dos agentes públicos é o único caminho.